Tempo dos balanços

(António Guerreiro, in Público, 15/12/2023)

António Guerreiro

Os balanços são uma máquina cruel de produzir passado. São a “magia negra” do jornalismo a desafiar a historiografia.


Final do ano, tempo de “balanços”. Na cultura, na política, na economia – todas as áreas são submetidas a uma recapitulação, como se o calendário anual, o início e o fim do ano civil, correspondesse a um ciclo da história, a um antes e um depois capazes de sinalizar uma época autónoma rigorosamente delimitada. De onde vem e como se impôs esta mania de fazer esboços cartográficos espontâneos, determinados pelos caprichos da memória e pela lógica do jornalismo, dos últimos 365 dias do ano?

Evidentemente, trata-se de um “género” jornalístico que não pode ser confundido com a historiografia. Mas falharíamos o seu significado se não percebêssemos que este fenómeno de superfície é uma manifestação sintomática de uma formação de sentido muito mais profunda: os balanços anuais são uma versão popular da tendência do nosso tempo para escandir o tempo histórico contemporâneo em épocas.

Já se disse até que nós somos a “época das epoquizações”. Muitas das “novas” épocas anunciadas acabaram por não trazer nada de novo. O 11 de Setembro, olhado à distância de pouco mais de 20 anos, marcou porventura uma nova época, uma cesura na história universal, como se afirmou na altura com toda a convicção? Esta mania de procurar marcos e novidades que inauguram novas épocas históricas (essa mania que também determina os balanços anuais, que são uma espécie de laicização do Juízo Final) entrou desde há muito tempo em modo de escalada aceleracionista.

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O historiador François Hartog ensinou-nos com rigor analítico e um excepcional alcance teórico que passámos de uma aceleração da história enquanto modalidade do regime moderno a uma espécie de aceleração da aceleração, isto é, uma aceleração que tem um fim em si mesma. E assim ele chega à ideia do “presentismo” – um regime de historicidade que só conhece o presente como experiência do tempo. As categorias do passado e do futuro deixam de existir.

A obsessão pelos balanços anuais (a que se juntam outros modos de escandir o tempo: as décadas, as rentrées, etc.) é uma manifestação deste regime de historicidade. A aceleração que nos faz viver exclusivamente no presente produz este efeito: as coisas mal nascem já são passado. De tal modo que nenhuma época produziu em tão pouco tempo tanto passado como a nossa. É isso que os balanços fazem, na sua maneira de trazerem à superfície um fenómeno muito mais profundo: eles são uma máquina cruel de produzir passado. São a “magia negra” do jornalismo a desafiar a historiografia.

Do futuro, resta apenas uma metáfora: o relógio fictício do apocalipse, o Doomsday Clock, que os físicos do Projecto Manhattan puseram em 1947 a contar o tempo que nos resta. Também esse relógio acelerou. No seu início, os ponteiros marcavam 23h53m. Depois, a ameaça nuclear no tempo da guerra fria fez os ponteiros avançar. Porém, depois da queda do Muro de Berlim, quando alguns “futurólogos” anunciavam o “fim da história” e o triunfo universal da democracia liberal, o relógio recuou para as 23h43. A promessa do fim dos tempos parecia estar agora mais distante e remetida para a pura condição da escatologia judaico-cristã. Actualmente, os ponteiros do relógio metafórico estão fixados em 90 segundos da meia-noite. Esse é o tempo que nos resta antes do fim do mundo, avisa o relógio que os “colapsólogos” consultam diariamente.

Deste modo, o pouco tempo que nos resta é um tempo que falta. E o tempo que falta é necessariamente um tempo dos balanços. Já não há tempo para mais nada. Resta talvez esta última esperança, que um profeta do apocalipse nuclear, Günter Anders, formulou desta maneira: “A nossa paixão apocalíptica não tem outro objectivo senão o de impedir o apocalipse”.


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Um pensamento sobre “Tempo dos balanços

  1. A palavra “apocalipse” vem dum termo grego que significa “exposição” ou “exibição”.

    O que foi exibido ou revelado na Revelação bíblica?

    Este uso da palavra “apocalipse” reflete a maneira de a maioria das pessoas a entenderem e a verem usada em títulos de filmes e de livros, em artigos de revistas e em relatos jornalísticos. Ela cria visões de um cataclismo .

    A situação do mundo é realmente desesperadora, como muitos hoje prontamente admitem. Tenho perguntado a pessoas de várias partes do mundo o que elas acham que o futuro nos reserva? O conceito da maioria é pessimista. . . . As palavras ‘Armagedom’ e ‘Apocalipse’ são usadas com frequência para descrever eventos do cenário mundial.

    2024: A grande transição!

    O 2024 será o ano do “Cisne Negro”. Claro que, se tudo correr mal, os gráficos e as análises serão a menor das nossas preocupações. Como diriam os nossos amigos britânicos: keep calm and carry on.

    No entanto, mesmo que sejamos afectados, não percamos de vista o facto de que os acontecimentos são avaliados ao longo do tempo. Há deslocação e caos, há ataques, mas o mundo está a ser reconstruído. Isso não significa o fim do mundo, mas um mundo novo. É o status quo que está a tornar-se insustentável. Quer se trate da dívida,guerra ou das crises, não podemos varrer constantemente o pó para debaixo do tapete.

    É apenas uma questão de tempo. O mais importante é estar preparado para isso, e é isso que os líderes de muitos países se recusam a fazer, pelo que fechar os olhos será ainda mais difícil de engolir…

    JP Morgan citou: “talvez o período mais perigoso que o mundo já viu em décadas”. A guerra na Ucrânia, combinada com os ataques a Israel na semana passada, poderá ter um enorme impacto nos mercados energético e alimentar, no comércio mundial e nas relações geopolíticas.

    O facto de este modelo consumista e materialista de sociedade estar a cair no caos não é dramático.

    As economias ocidentais ainda estão viva graças ao soro de dívidas… mas a qualquer momento pode ficar sem soro…

    A queda da China económica será previsível, sobretudo com todos os dados falsos das regiões chinesas. Isto vai acabar por baralhar o baralho mundial.
    Pessoalmente, duvido que uma operação nacionalista tenha lugar durante o colapso da economia chinesa.

    Para mim, a obsessão da China com os Estados Unidos é um dos problemas, por exemplo, a corrida ao armamento e a rebelião em Hong Kong, Taiwan, etc. Os investimentos em África continuam a ser apostas arriscadas.

    Desde 2018 que a China não tem registado um abrandamento, mas sim um declínio económico. As estatísticas oficiais são contos para adormecer o povo. É o Partido que fixa harmoniosamente a taxa de crescimento nas reuniões do Politburo do Comité Central. Temos de encontrar e basear-nos em indicadores económicos sobre os quais o Estado não tem qualquer controlo. E isto aplica-se a todos os tipos de Estado, incluindo no Ocidente.

    Por exemplo, o consumo de automóveis é um excelente indicador: a China está muito mal equipada, e uma crise neste domínio implica uma crise global da economia. O consumo de aço é também um excelente indicador e é independente do governo chinês. Etc….

    Resumo pessoal:
    O colosso com pés de barro.
    Os pés de barro misturados com ferro simbolizam o sistema muito frágil.
    A queda do colosso é o colapso do sistema monetário mundial.
    A razão: a especulação imobiliária
    Gestores de activos (Country Garden, Evergrande) em grandes dificuldades
    A queda do colosso espezinhada por uma pedra…………..
    O golpe final virá da BlackRock
    A ilusão do valor financeiro de todas as coisas
    Com milhões a morrer nas guerras e pandemias que se avizinham…………
    A oferta e a procura de bens imobiliários reduzir-se-ão a nada

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